terça-feira, 29 de março de 2016

O Discurso Literário. Edna Domenica Merola.

Crédito da foto: Edna Domenica Merola


Você já se perguntou quais foram as maiores criações da humanidade?

“As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito.
Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas.
Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do mundo da natureza. As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. (HUIZINGA, 2000, p 7).
Refletir sobre as funções da linguagem –“comunicar, ensinar e comandar”– implica em pensar que a escrita é representação da realidade pelo viés da ‘voz’ do autor, quer seja ele um historiador contemporâneo ou um cronista do rei (diretamente subordinado aos monarcas europeus). A representação da realidade é cristalizada pela escrita.
A escrita literária não faz contrato integral com narrações da realidade compactuada. Inventar (mentir) enriquece a narrativa ficcional. Essa “privilegia apenas um ou dois pontos de vista a partir dos quais a história pode ser contada e concentra-se no modo como os acontecimentos afetam esses pontos de vista.” (LODGE, 2011, p 36).
O discurso ficcional serve para mostrar e para tal cria as falas dos personagens. Serve ainda para dizer por meio do resumo autoral, no qual “a concisão e a abstração da linguagem do narrador apagam o caráter particular e individual dos personagens e de suas ações.” (LODGE, 2011.).
O discurso literário distingue-se dos demais, e isso não ocorre pelo simples fato de usar a norma culta. Há escritores que utilizam a linguagem coloquial, enriquecendo sua criação com isso. Para efeitos de ensino em oficinas de criação costumo dizer aos iniciantes que coloquem seus conhecimentos da norma culta na voz do narrador  ou personagem da elite cultural  em contexto social; e a linguagem informal no contexto íntimo ou na fala dos personagens populares. Mas provavelmente se libertarão dessa receitinha, ao sentirem-se seguros para criar discursos específicos que nascem juntos com o narrador, os personagens, o contexto.
Sem aprofundar a discussão sobre o impacto do uso da norma culta na qualidade estética de um texto, apresento algumas considerações sobre clareza e concisão textual.“A verdadeira questão não é – nunca foi – o número de palavras, mas a eficiência com que elas dão conta do trabalho que foram convocadas a desempenhar. Se a concisão tem valor parcial, adequada a certos estilos mas não a outros, arrisco dizer que a clareza é um valor universal: até uma história intencionalmente obscura precisa ser expressa com palavras nítidas. [...] cabe ao escritor deixar em foco os conflitos principais da sua história. Às vezes se aprimora o foco por subtração, outras vezes por adição. Uma cena a mais, um parágrafo descritivo a mais, um diálogo a mais podem ser exatamente o que faltava para tornar vigoroso um texto até então capenga e flácido.” (RODRIGUES, 2013).


ADENDO: Um texto que brinca com os nomes de algumas figuras de palavras
Antes de apresentar um texto jocoso sobre a recepção das palavras metonímia, catacrese e metáforaexplico a etimologia delas, já que sem esse conhecimento prévio, o leitor não conseguiria achar nenhuma graça no texto!

A palavra catacrese vem do latim catachresis, que tem origem no grego katakhresis, que significa “mau uso”. Aplicado à figura de linguagem, o termo tem o significado de mau uso das palavras.
A palavra metonímia deriva do grego metonymía. Pela etimologia da palavra temos que met quer dizer “mudança” Onímia (ou o termo onoma)  significa “nome”. Metonímia é “mudança de nome”. A troca das palavras é feita respeitando-se uma relação objetiva que há entre elas, uma clara associação de ideias que é facilmente percebida.
Pela etimologia da palavra metáfora temos que meta = além. A metáfora ocorre quando se utiliza uma palavra fora do seu sentido básico, por efeito de semelhança. No sentido metafórico, o termo real A e o termo ideal B se juntam pela lembrança que um evoca do outro. Metáfora, ao pé da letra, significa transposição por similaridade.


NonSense no Ano do Dragão. MEROLA (2012)

Em 2012, em Florianópolis, enfrentei corajosamente o período denominado pelo horóscopo chinês de Ano do Dragão. Foi nesse espírito que em onze de fevereiro desse ano resolvi trocar alguns hábitos, a exemplo: de colocar a razão acima do coração.
Ver detalhadamente o que há de emocional nos acontecimentos da vida para saboreá-la mais intensamente é uma experiência para poucos: uma conquista árdua. Arrancar o hábito de racionalizar acontecimentos e sentimentos (como a escola nos inculcou desde tenra idade) exige o exercício e o controle das emoções.
[...] Após tanta reflexão, começo a me sentir tomada pela necessidade de correr o risco de fazer algumas revisões vitais. Sou apaixonada por literatura, mas recentemente andei implicando com os nomes que a teoria literária utiliza para se referir a alguns tropos ou palavras utilizadas em sentido figurado.
As palavras metáfora, metonímia, catacrese não parecem referir-se a boas coisas no sentido cristão do termo! E, no entanto, são lindas, quando bem usadas por corações e mentes em estado de criação.
Deparo-me com a necessidade de criar um ritual. Penso que um batismo pode expurgar dessas figuras o pecado originalmente cometido de colocar-lhes nomes exclusivamente para o entendimento e memorização dos versados em etimologia de palavras. O que as torna definitivamente impopulares.
Então começo o ritual de rebatismos... Depois de mais de quarenta anos de vida íntima com essas figuras penso que tenho esse direito.
Sei que a metáfora é a palavra ou expressão que produz sentidos figurados por meio de comparações implícitas. O exemplo de uso dado frequentemente é o verso de Camões: "Amor é fogo que arde sem se ver”.
Já o som da palavra metáfora... parece se referir ao estabelecimento de uma meta ou de um alvo a ser alcançado, mas que está fora. Não sei o que ou quem está fora. Mas me basta saber que não está dentro e que, portanto, é desatualizado ou inapropriado. Então basta! Eu a chamarei de “pode entrar é por aqui!”
A metonímia é “um Deus que me perdoe” pelas suas quatro letras iniciais que podem ser tomadas como referente à ação libidinosa, pecaminosa, desastrosa num poema... E depois tem o célebre uso dessa figura por José de Alencar, quando descreveu Iracema como a “virgem dos lábios de mel”... alimento proibido para diabéticos e obesos! Dizer que a índia era virgem, negando- lhe o direito de ser uma mulher normal! E ainda fazer propaganda de cosméticos para lábios à custa de abelhinhas escravas! É uma palavra que arremesso, jogo, descarto, meto fora... essa metonímia. Portanto, a metonímia chamá-la-ei “de lábios de hambúrguer”. Os alunos da sétima série do Ensino Fundamental elegeram essa expressão em consulta nacional recente. Está feito!
A escolha do novo nome da catacrese é um tanto extensa e pode parecer “sem pé nem cabeça”, mas todos nós sabemos que a expressão “pés da mesa” é um exemplo de catacrese. A mesa é um objeto presente na vida afora, mas ainda inatingível para os bebês que engatinham. Ainda excluídos do Movimento dos Pés Livres, os bebês são impedidos de escalar a almejada mesa, por motivos adultos e não pessoais. Por isso, em tempos de inclusão, a catacrese fica aqui chamada de “escalar o colo da avó”.
Curiosamente, a soma do número de letras das três palavras metáfora, metonímia, catacrese é igual a vinte e seis o que equivale a oito, que significa o que permanece em equilíbrio. O que pode vir a significar que tentar se libertar da mesmice pode gerar equilíbrio.
 [...] Escolho ver minhas elucubrações como amigas de folguedos... E então resolvo ficar com a visão nonsense que me serviu para sobrepujar racionalismos inócuos. Fico com minha opinião de que: importa mais rir de alegria sem razão, do que construir castelo de racionalização.


Exemplo do uso de Linguagem Metafórica, na música popular brasileira. Pedaço de Mim. Chico Buarque de Holanda.

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
  

Ovelha Negra. Rita Lee.

Foi quando meu pai
Me disse:
"Filha, você é a Ovelha Negra
Da família"
Agora é hora de você assumir
Uh! Uh! E sumir!...

REFERÊNCIAS:

ESPESCHIT, Gustavo. Rascunhos e Narrativas (espeschit@gutoesp).
Disponível em

HOLANDA, Francisco Buarque. Pedaço de Mim. Disponível em:
Consultado em 17/02/2016.

HUIZINGA, Johan. Natureza e Significado do Jogo como Fenômeno Cultural in Homo Ludens, São Paulo: Perspectiva, 2000, p 7.

LEE, Rita. Ovelha Negra.

LODGE, David. A Arte da Ficção. Trad. Bras. Porto Alegre: L& PM Pocket, 2011.

MEROLA, Edna D. No Ano do Dragão. Florianópolis: Postmix, 2012. P 21-24.
_______________ De que são feitas as Histórias. Florianópolis: Postmix, 2014. P 66.

RODRIGUES, Sérgio. Escrever, cortar, escrever: a concisão e a clareza. 20/07/2013. Toda Prosa. Disponível em http://todoprosa.com.br/ escrever-cortar-escrever-a-concisao-e-a-clareza/


Metáfora, Metonímia e Catacrese - Língua Afiada - Episódio 10. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Tyq8GEbwkKM

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