Abertura por Brígida de Poli
"Hoje eu sou uma figura
ilustre, embora muitos não saibam o porquê. Uma espécie de prócer, para tirar
do armário, espanar, e se apresentar em algum evento cultural, e dizer algumas
frases para a ocasião, e depois voltar a ser guardado no armário.” ( Daniel
Mantovani-personagem)
O CIDADÃO ILUSTRE – Direção: Mariano
Cohn -Arg - 2017
Daniel
Mantovani (Oscar Martínez), um escritor argentino e vencedor do Prêmio Nobel,
radicado há 40 anos na Europa, volta à sua terra natal, ao povoado onde nasceu
e que inspirou a maioria de seus livros, para receber o título de Cidadão Ilustre
da cidade - um dos únicos prêmios que aceitou receber. No entanto, sua ilustre
visita desencadeará uma série de situações complicadas entre ele e o povo
local. (Sinopse:Adoro Cinema)
O Cidadão
ilustre: belíssimo filme. Por Yara Hornke
Embora
a dúvida, ficção ou realidade; a
história revela o ambiente, a geografia, os dramas e emoções próprias do
microcosmo provinciano. É tão fidedigno
que nos envolve, nos transportando para o lugar particular, familiar, onde a
critica, a transgressão parecem não ter espaço, ou aparece como um
comportamento "escandaloso" como o da filha da ex namorada do herói. O
brilhantismo do premiado autor dá lugar aos pequenos apetites a mesquinharia e
mediocridade. Inicialmente colaborativo com os desejos da comunidade Daniel começa se incomodar e retoma o
sentimento que o levou a sair do local. Resiste e se nega a atender os desejos
e desejos locais. A resposta da província ganha agressividade e pode ser tão destrutiva como em Easy Hyder se voltando contra o homenageado.
É
interessante a possibilidade de se comparar os dois universos, o acadêmico, do
brilhantismo intelectual, e o doméstico e singelo de uma pequena cidade argentina. É um ambiente muito próximo do que a gente
vive nas nossas famílias, onde cabem todos os vieses do conservadorismo, do
recato aparente. Da falta liberdade- por isso Daniel saiu de Sala. Por outro lado,
o intelectual famoso, se torna um sujeito arrogante e pedante nas suas falas
definitivas que resumem toda a verdade das coisas.
Daniel,
não concede, não escuta nem tenta compreender como é esse universo. Daí mata a
curiosidade e se torna velho, se aproxima da cerimônia e impessoalidade de um monumento.
O
único vislumbre de concessão é quando ele pede a sua secretaria que providencie
a cadeira de rodas especial, pedido por um dos moradores.
Ambos
cenários são artificiais, fogem da autenticidade dos personagens.
O
final enigmático, entre ficção e realidade acho que não precisa ser
decifrado... pode ser qualquer um e a cicatriz que pode ser do tiro reforça
essa dualidade.
Percepções de Jandira Boscato
No início do filme, achei o personagem central
muito revoltado, amargo, deprimido. Isso me deixou curiosa em relação à
continuidade da trama. O protagonista tinha um amor de quem se distanciou para
seguir a carreira, quando deixou a Argentina para se fixar na
Europa. Depois de quarenta anos, retorna à cidadezinha natal. Para
uma comunidade do interior, alguém que nasceu lá e que retorna, é sempre
hipervalorizado. Isso ocorre com o escritor “filho de Salas”, logo de sua
chegada. No decorrer da trama, senti pena do protagonista porque ele era
uma pessoa muito solitária. Os personagens ficcionais criados por ele eram
reais e apresentados em suas facetas negativas. A reação dos cidadãos da
pequena cidade contra o escritor foi por isso justificada. Fiquei triste quando o personagem Daniel se negou a doar uma cadeira de rodas para um necessitado e também com a recusa de visitar o pai de um
cidadão que o convida para jantar em sua residência. Em ambas as situações o
personagem escritor dá justificativas politicamente corretas, mas o faz com
muita arrogância.
Clara Amelia de
Oliveira comenta o filme O Cidadão Ilustre, uma produção Argentina
O filme surpreende
pelo roteiro que nos leva a acreditar numa história fictícia narrada pelo
personagem principal, o escritor Daniel Mantovani, como sendo real, e o efeito
espelho do que é real e o que é imagem. Neste sentido, eu caí como um patinho.
Ao final, Daniel mostra uma cicatriz e coloca novamente em dúvida sobre a
origem real ou fictícia desta. Deixa claro como as fronteiras são frágeis entre
realidade e fantasia. Por isso nos apegamos a crenças, antes de nos apegar a
realidade nua e crua a nossa frente.
E sobre o conteúdo
do filme, no desenrolar da história, os discursos e posições
político-filosóficas de Daniel, sobre o mundo decadente em que nos encontramos,
dá um certo alívio de pensar que afinal, não estamos tão loucos ao questionar
este mundo doentio que temos hoje. Às vezes, dá vontade de pedir para o mundo
que eu quero descer, mas daí vem aquela força e diz, continue. Semear é pra
hoje, colher, será pra o dia de São Nunca. Mas o dia de São Nunca vai chegar,
se o planeta não for destruído antes. Se a humanidade hoje se comporta como uma
criança de pouco menos de dois anos de idade (já li uma análise que expressava
isto), esta vai atingir a idade adulta jovem, numa previsão pessimista, lá pelo
ano 60.000. Previsão pessimista seria considerado se continuar no mesmo ritmo
que chegou até aqui. Mas, como citei, se
o planeta não for destruído antes, e se houver um salto quântico baseado em
acontecimentos que não são possíveis de prever, talvez ela amadureça e se
transforme muitos antes desta previsão pessimista. Por isso gosto da incerteza
como princípio. Este princípio ajuda a não ficar 100 % pessimista. Vá que...
Parte II, por Clara Amélia de Oliveira
Ao assistir ao filme Cidadão Ilustre, anotei uma cena, mas não consegui comentá-la logo em seguida. Ela ficou me incomodando. A cena: um certo senhor vai pedir a Daniel para comprar uma cadeira de rodas para seu filho doente. Daniel prontamente se nega explicando ao senhor que ele não é uma ONG. Uma das interpretações possíveis sobre esta fala é de que Daniel é egoísta, arrogante, além de impiedoso. Mas há pelo menos outra possível interpretação, desde que se olhe a cena completa. Nela, Daniel demonstra ser consciente de sua impotência para resolver todos os pedidos possíveis. Ajudar este indivíduo e não poder ajudar a todos, seria injusto. Por isso, Daniel explicou, pedagogicamente, ao senhor que se ele não poderia atender a todos os pedidos idênticos que chegassem a ele, não seria justo atender um pedido exclusivo. Analisar o fato isolado, sem levar em conta este porque, explicado na cena, pelo personagem, pode levar a uma falsa interpretação de egoísmo. E eu, quando ouvi Daniel citar que ele não é uma ONG, me senti tocada num ponto que tem me incomodado há algum tempo. Poderia se perguntar porque surgiram e porque tem de existir ONGs-Organizações não Governamentais? Elas nasceram para resolver questões que são a mais clara e límpida obrigação dos Governos, e não delas. Porque elas assumem este papel em vez de pressionar a moralização dos governos e elites exploradoras? É fácil perceber que, no mundo todo, sempre houve altruístas, pessoas ricas fazendo grandes doações como Cristiano Ronaldo, Schumacker, Greta, a garota sueca, etc. Mas, matematicamente, fica comprovado que estas ações individuais, não resolvem minimamente a questão. Basta citar um único número (haveria outros). 70 milhões de refugiados no mundo atual. Já imaginou estas pessoas juntas, uma população de 70 milhões? Então fica explícito que as ONGs e os altruístas são irrelevantes diante de tal dimensão de problema. Os governos e elites econômicas, tem concentrado a renda, e não redistribuem através dos serviços básicos como a saúde e a educação, e de preservação da vida no planeta. Além disso, eu acho que estas tentativas (maravilhosas na verdade) em prol de diminuir, hoje, o sofrimento alheio, ainda criam um viés. Elas acabam minorando e, assim, acalmando um pouco estas pessoas necessitadas, ajudando a postergar a necessária e urgente solução. Tem de haver uma pressão única, de todos os lados, de todos os países para acabar de vez com ONGs, esmolas e altruísmo individual e trazer estratégias governamentais autênticas em prol do equilíbrio necessário da vida humana no planeta. Assim, eu acho que compreendi a fala do personagem e diria: eu não sou ONG e nem mesmo aceito a estrutura da ONG que mostra que a governabilidade se omite ao ponto de pessoas individualmente tentarem dar uma contribuição minorando o sofrimento humano. O sofrimento humano não pode ser colocado em uma loteria. Ser premiado com uma ação de ONG, ou do Luciano Hulk, ou de alguém outro. Isto joga fumaça e embota a verdadeira causa da pobreza e sofrimento planetário. O modelo capitalista falido de acumulação desmedida de renda e poder.
Parte II, por Clara Amélia de Oliveira
Ao assistir ao filme Cidadão Ilustre, anotei uma cena, mas não consegui comentá-la logo em seguida. Ela ficou me incomodando. A cena: um certo senhor vai pedir a Daniel para comprar uma cadeira de rodas para seu filho doente. Daniel prontamente se nega explicando ao senhor que ele não é uma ONG. Uma das interpretações possíveis sobre esta fala é de que Daniel é egoísta, arrogante, além de impiedoso. Mas há pelo menos outra possível interpretação, desde que se olhe a cena completa. Nela, Daniel demonstra ser consciente de sua impotência para resolver todos os pedidos possíveis. Ajudar este indivíduo e não poder ajudar a todos, seria injusto. Por isso, Daniel explicou, pedagogicamente, ao senhor que se ele não poderia atender a todos os pedidos idênticos que chegassem a ele, não seria justo atender um pedido exclusivo. Analisar o fato isolado, sem levar em conta este porque, explicado na cena, pelo personagem, pode levar a uma falsa interpretação de egoísmo. E eu, quando ouvi Daniel citar que ele não é uma ONG, me senti tocada num ponto que tem me incomodado há algum tempo. Poderia se perguntar porque surgiram e porque tem de existir ONGs-Organizações não Governamentais? Elas nasceram para resolver questões que são a mais clara e límpida obrigação dos Governos, e não delas. Porque elas assumem este papel em vez de pressionar a moralização dos governos e elites exploradoras? É fácil perceber que, no mundo todo, sempre houve altruístas, pessoas ricas fazendo grandes doações como Cristiano Ronaldo, Schumacker, Greta, a garota sueca, etc. Mas, matematicamente, fica comprovado que estas ações individuais, não resolvem minimamente a questão. Basta citar um único número (haveria outros). 70 milhões de refugiados no mundo atual. Já imaginou estas pessoas juntas, uma população de 70 milhões? Então fica explícito que as ONGs e os altruístas são irrelevantes diante de tal dimensão de problema. Os governos e elites econômicas, tem concentrado a renda, e não redistribuem através dos serviços básicos como a saúde e a educação, e de preservação da vida no planeta. Além disso, eu acho que estas tentativas (maravilhosas na verdade) em prol de diminuir, hoje, o sofrimento alheio, ainda criam um viés. Elas acabam minorando e, assim, acalmando um pouco estas pessoas necessitadas, ajudando a postergar a necessária e urgente solução. Tem de haver uma pressão única, de todos os lados, de todos os países para acabar de vez com ONGs, esmolas e altruísmo individual e trazer estratégias governamentais autênticas em prol do equilíbrio necessário da vida humana no planeta. Assim, eu acho que compreendi a fala do personagem e diria: eu não sou ONG e nem mesmo aceito a estrutura da ONG que mostra que a governabilidade se omite ao ponto de pessoas individualmente tentarem dar uma contribuição minorando o sofrimento humano. O sofrimento humano não pode ser colocado em uma loteria. Ser premiado com uma ação de ONG, ou do Luciano Hulk, ou de alguém outro. Isto joga fumaça e embota a verdadeira causa da pobreza e sofrimento planetário. O modelo capitalista falido de acumulação desmedida de renda e poder.
A sombra do
escritor na figura do narrador. Edna Domenica
Merola
Segundo Huizinga
(2000), as funções da linguagem são as de “comunicar, ensinar e comandar”.
Reconhecer tais
funções implica em pensar que a escrita é representação da realidade pelo viés
da voz do narrador, quer seja ele um historiador contemporâneo ou um
cronista pretérito diretamente subordinado a um poderoso rei.
A representação da
realidade é cristalizada pela escrita. No entanto, a escrita literária não se
obriga a estabelecer contrato de fidelidade com a realidade compactuada.
Narrar é inventar
(iludir), já que a narrativa ficcional “privilegia apenas um ou dois pontos de
vista a partir dos quais a história pode ser contada e concentra-se no modo
como os acontecimentos afetam esses pontos de vista.” (LODGE, 2011, p 36).
O leitor
contemporâneo, no entanto, tem sede de reality show de tal forma que a
literatura, assim reconhecida pela academia, fica ao deus dará. A inventividade e os aspectos estéticos da obra foram substituídos pela apreciação moral da história contada
e da vida do escritor.
O filme O Cidadão
Ilustre aborda a questão da sombra do escritor na figura do narrador com maestria. Não justificarei essa afirmação
para deixar que cada leitor dessas linhas contestem ou acatem por iguais ou
diferentes motivos que eu apontaria.
Brígida de Poli é jornalista, cronista, cinéfila, colunista do Portal Making Of http://portalmakingof.com.br/cine-e-series . Simpatizante e voluntária em prol dos direitos e do bem-estar de refugiados. Idealizadora e mediadora do Lendo Cinema, autora do livro As Mulheres de Minha Vida, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-mulheres-da-minha-vida/
Clara Amélia de Oliveira é engenheira,
professora aposentada da UFSC .
Edna Domenica Merola, pedagoga e
psicóloga, mestre em Educação e Comunicação, participa de Lendo Cinema );
de Textos Curtos da Biblioteca do CIC (com Gilberto Motta e
Esni Soares); das aulas sobre música popular brasileira ministradas por Alberto
Gonçalves. Autora do livro As Marias de San Gennaro, Coleção
Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-marias-de-san-gennaro/.
Jandira Boscato é cinéfila e cuidadora de idosos.
Yara Hornke, psicóloga, trabalha
em prol dos direitos e do bem-estar de presidiários (1)
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