segunda-feira, 29 de junho de 2020

LENDO CINEMA – IV


Abertura por Brígida de Poli

"Hoje eu sou uma figura ilustre, embora muitos não saibam o porquê. Uma espécie de prócer, para tirar do armário, espanar, e se apresentar em algum evento cultural, e dizer algumas frases para a ocasião, e depois voltar a ser guardado no armário.” ( Daniel Mantovani-personagem)

O CIDADÃO ILUSTRE – Direção: Mariano Cohn -Arg - 2017

Daniel Mantovani (Oscar Martínez), um escritor argentino e vencedor do Prêmio Nobel, radicado há 40 anos na Europa, volta à sua terra natal, ao povoado onde nasceu e que inspirou a maioria de seus livros, para receber o título de Cidadão Ilustre da cidade - um dos únicos prêmios que aceitou receber. No entanto, sua ilustre visita desencadeará uma série de situações complicadas entre ele e o povo local. (Sinopse:Adoro Cinema)


O Cidadão ilustre: belíssimo filme. Por Yara Hornke
Embora a dúvida, ficção ou realidade;  a história revela o ambiente, a geografia, os dramas e emoções próprias do microcosmo  provinciano. É tão fidedigno que nos envolve, nos transportando para o lugar particular, familiar, onde a critica, a transgressão parecem não ter espaço, ou aparece como um comportamento "escandaloso" como o  da filha da ex namorada do herói. O brilhantismo do premiado autor dá lugar aos pequenos apetites a mesquinharia e mediocridade. Inicialmente colaborativo com os desejos da comunidade  Daniel começa se incomodar e retoma o sentimento que o levou a sair do local. Resiste e se nega a atender os desejos e desejos locais.   A resposta da província ganha agressividade e  pode ser tão  destrutiva como em  Easy Hyder se voltando contra o homenageado.
É interessante a possibilidade de se comparar os dois universos, o acadêmico, do brilhantismo intelectual, e o doméstico e singelo de uma pequena cidade argentina.  É um ambiente muito próximo do que a gente vive nas nossas famílias, onde cabem todos os vieses do conservadorismo, do recato aparente. Da falta liberdade- por isso Daniel saiu de Sala. Por outro lado, o intelectual famoso, se torna um sujeito arrogante e pedante nas suas falas definitivas que resumem toda a verdade das coisas.
Daniel, não concede, não escuta nem tenta compreender como é esse universo. Daí mata a curiosidade e se torna velho, se aproxima da cerimônia e impessoalidade de um monumento.
O único vislumbre de concessão é quando ele pede a sua secretaria que providencie a cadeira de rodas especial, pedido por um dos moradores.
Ambos cenários são artificiais, fogem da autenticidade dos personagens.
O final enigmático, entre ficção e realidade acho que não precisa ser decifrado... pode ser qualquer um e a cicatriz que pode ser do tiro reforça essa dualidade.

Percepções de Jandira Boscato
No início do filme, achei o personagem central muito revoltado, amargo, deprimido. Isso me deixou curiosa em relação à continuidade da trama. O protagonista tinha um amor de quem se distanciou para seguir a carreira, quando deixou a Argentina para se fixar na Europa. Depois de quarenta anos, retorna à cidadezinha natal. Para uma comunidade do interior, alguém que nasceu lá e que retorna, é sempre hipervalorizado. Isso ocorre com o escritor “filho de Salas”, logo de sua chegada. No decorrer da trama, senti pena do protagonista porque ele era uma pessoa muito solitária. Os personagens ficcionais criados por ele eram reais e apresentados em suas facetas negativas. A reação dos cidadãos da pequena cidade contra o escritor foi por isso justificada. Fiquei triste quando o personagem Daniel se negou a doar uma cadeira de rodas para um  necessitado e também com a recusa de visitar o pai de um cidadão que o convida para jantar em sua residência. Em ambas as situações o personagem escritor dá justificativas politicamente corretas, mas o faz com muita arrogância. 

Clara Amelia de Oliveira comenta o filme O Cidadão Ilustre, uma produção Argentina
O filme surpreende pelo roteiro que nos leva a acreditar numa história fictícia narrada pelo personagem principal, o escritor Daniel Mantovani, como sendo real, e o efeito espelho do que é real e o que é imagem. Neste sentido, eu caí como um patinho. Ao final, Daniel mostra uma cicatriz e coloca novamente em dúvida sobre a origem real ou fictícia desta. Deixa claro como as fronteiras são frágeis entre realidade e fantasia. Por isso nos apegamos a crenças, antes de nos apegar a realidade nua e crua a nossa frente.
E sobre o conteúdo do filme, no desenrolar da história, os discursos e posições político-filosóficas de Daniel, sobre o mundo decadente em que nos encontramos, dá um certo alívio de pensar que afinal, não estamos tão loucos ao questionar este mundo doentio que temos hoje. Às vezes, dá vontade de pedir para o mundo que eu quero descer, mas daí vem aquela força e diz, continue. Semear é pra hoje, colher, será pra o dia de São Nunca. Mas o dia de São Nunca vai chegar, se o planeta não for destruído antes. Se a humanidade hoje se comporta como uma criança de pouco menos de dois anos de idade (já li uma análise que expressava isto), esta vai atingir a idade adulta jovem, numa previsão pessimista, lá pelo ano 60.000. Previsão pessimista seria considerado se continuar no mesmo ritmo que chegou até aqui.  Mas, como citei, se o planeta não for destruído antes, e se houver um salto quântico baseado em acontecimentos que não são possíveis de prever, talvez ela amadureça e se transforme muitos antes desta previsão pessimista. Por isso gosto da incerteza como princípio. Este princípio ajuda a não ficar 100 % pessimista. Vá que... 

Parte II, por Clara Amélia de Oliveira
Ao assistir ao filme Cidadão Ilustre, anotei uma cena, mas não consegui comentá-la logo em seguida. Ela ficou me incomodando. A cena: um certo senhor vai pedir a Daniel para comprar uma cadeira de rodas para seu filho doente. Daniel prontamente se nega explicando ao senhor que ele não é uma ONG. Uma das interpretações possíveis sobre esta fala é de que Daniel é egoísta, arrogante, além de impiedoso. Mas há pelo menos outra possível interpretação, desde que se olhe a cena completa. Nela, Daniel demonstra ser consciente de sua impotência para resolver todos os pedidos possíveis. Ajudar este indivíduo e não poder ajudar a todos, seria injusto. Por isso, Daniel explicou, pedagogicamente, ao senhor que se ele não poderia atender a todos os pedidos idênticos que chegassem a ele, não seria justo atender um pedido exclusivo. Analisar o fato isolado, sem levar em conta este porque, explicado na cena, pelo personagem, pode levar a uma falsa interpretação de egoísmo. E eu, quando ouvi Daniel citar que ele não é uma ONG, me senti tocada num ponto que tem me incomodado há algum tempo. Poderia se perguntar porque surgiram e porque tem de existir ONGs-Organizações não Governamentais? Elas nasceram para resolver questões que são a mais clara e límpida obrigação dos Governos, e não delas. Porque elas assumem este papel em vez de pressionar a moralização dos governos e elites exploradoras? É fácil perceber que, no mundo todo, sempre houve altruístas, pessoas ricas fazendo grandes doações como Cristiano Ronaldo, Schumacker, Greta, a garota sueca, etc. Mas, matematicamente, fica comprovado que estas ações individuais, não resolvem minimamente a questão. Basta citar um único número (haveria outros). 70 milhões de refugiados no mundo atual. Já imaginou estas pessoas juntas, uma população de 70 milhões? Então fica explícito que as ONGs e os altruístas são irrelevantes diante de tal dimensão de problema. Os governos e elites econômicas, tem concentrado a renda, e não redistribuem através dos serviços básicos como a saúde e a educação, e de preservação da vida no planeta. Além disso, eu acho que estas tentativas (maravilhosas na verdade) em prol de diminuir, hoje, o sofrimento alheio, ainda criam um viés. Elas acabam minorando e, assim, acalmando um pouco estas pessoas necessitadas, ajudando a postergar a necessária e urgente solução. Tem de haver uma pressão única, de todos os lados, de todos os países para acabar de vez com ONGs, esmolas e altruísmo individual e trazer estratégias governamentais autênticas em prol do equilíbrio necessário da vida humana no planeta. Assim, eu acho que compreendi a fala do personagem e diria: eu não sou ONG e nem mesmo aceito a estrutura da ONG que mostra que a governabilidade se omite ao ponto de pessoas individualmente tentarem dar uma contribuição minorando o sofrimento humano. O sofrimento humano não pode ser colocado em uma loteria. Ser premiado com uma ação de ONG, ou do Luciano Hulk, ou de alguém outro. Isto joga fumaça e embota a verdadeira causa da pobreza e sofrimento planetário. O modelo capitalista falido de acumulação desmedida de renda e poder. 

A sombra do escritor na figura do narrador. Edna Domenica Merola
Segundo Huizinga (2000), as funções da linguagem são as de “comunicar, ensinar e comandar”.
Reconhecer tais funções implica em pensar que a escrita é representação da realidade pelo viés da voz do narrador, quer seja ele um historiador contemporâneo ou um cronista pretérito diretamente subordinado a um poderoso rei.
A representação da realidade é cristalizada pela escrita. No entanto, a escrita literária não se obriga a estabelecer contrato de fidelidade com a realidade compactuada.
Narrar é inventar (iludir), já que a narrativa ficcional “privilegia apenas um ou dois pontos de vista a partir dos quais a história pode ser contada e concentra-se no modo como os acontecimentos afetam esses pontos de vista.” (LODGE, 2011, p 36).
O leitor contemporâneo, no entanto, tem sede de reality show de tal forma que a literatura, assim reconhecida pela academia, fica ao deus dará. A inventividade e os aspectos estéticos da obra foram substituídos pela apreciação moral da história contada e da vida do escritor.
O filme O Cidadão Ilustre aborda a questão da sombra do escritor na figura do narrador com maestria. Não justificarei essa afirmação para deixar que cada leitor dessas linhas contestem ou acatem por iguais ou diferentes motivos que eu apontaria.


Brígida de Poli é jornalista, cronista, cinéfila, colunista do Portal Making Of  http://portalmakingof.com.br/cine-e-series . Simpatizante e voluntária em prol dos direitos e do bem-estar de refugiados. Idealizadora e mediadora do Lendo Cinema, autora do livro As Mulheres de Minha Vida, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-mulheres-da-minha-vida/
Clara Amélia de Oliveira é engenheira, professora aposentada da UFSC . 
Edna Domenica Merola, pedagoga e psicóloga, mestre em Educação e Comunicação, participa de Lendo Cinema ); de Textos Curtos da Biblioteca do CIC (com Gilberto Motta e Esni Soares); das aulas sobre música popular brasileira ministradas por Alberto Gonçalves. Autora do livro As Marias de San Gennaro, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-marias-de-san-gennaro/
Jandira Boscato é cinéfila e cuidadora de idosos.
Yara Hornke, psicóloga, trabalha em prol dos direitos e do bem-estar de presidiários (1)

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terça-feira, 23 de junho de 2020

Lendo Cinema III



Abertura por Brígida de Poli
jornalista, cronista, cinéfila, colunista do Portal Making Of  http://portalmakingof.com.br/cine-e-series . Simpatizante e voluntária em prol dos direitos e do bem-estar de refugiados. Idealizadora e mediadora do Lendo Cinema, autora do livro As Mulheres de Minha Vida, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-mulheres-da-minha-vida/
“(...) O Estado não quer ou não pode proteger o cidadão. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista”.  (Ken Loach)
EU, DANIEL BLAKE
Direção: Ken Loach – Reino Unido (2016)
Nosso 3° filme se passa na Inglaterra, mas lembra muito o que acontece no Brasil, principalmente agora em tempos de auxílio emergencial. Burocracia, previdência social falha, falta de políticas públicas que protejam o cidadão que mais precisa. Esta é a realidade em que vive Daniel Blake, um viúvo impedido de trabalhar depois de um enfarte. Durante sua maratona para conseguir o seguro desemprego, ele conhece Katie, uma mãe solteira que cuida de dois filhos. Eles unem esforços pela sobrevivência.
O diretor Ken Loach sempre põe o dedo na ferida e sem apelar para o melodrama, mostra as dificuldades da pessoa comum num mundo globalizado. Seu filme mais recente “Você não estava aqui” (2019) fala da uberização da vida. Loach tenta melhorar o mundo, fazendo o que sabe: cinema.
Bóra lá assistir e escrever?


Sentimento Experimentados. Clara Amélia Oliveira

Este filme para mim se resumiu a dois sentimentos. Sufocante (porque real, expõe um sistema doente mas cuja lógica não se conseguiu quebrar até hoje) e deprimente (porque mostra quanta humanidade há nos seres vilipendiados pelo sistema). Chorei muito.
Mas o ponto que decidi analisar, foi um pequeno detalhe no discurso que a amiga de Dan leu no dia da cerimônia da morte dele. Ela leu as palavras que Dan deixou por escrito (o discurso de defesa que ele iria apresentar ao sistema que se negava a pagar-lhe a licença por doença). Daniel disse: eu sou um homem, não sou um cão. Isto me tocou fundo pois tenho lutado para mudar, na minha cabeça, a lógica que aceita que possamos tratar mal a um cão, é aceitável, enquanto deveríamos ter respeito pelo ser humano. Este desprezo implicitamente aceito tem que ser repensado. Com este mesmo sentido das palavras de Dan existe aquela letra de música brega de Waldick Soriano, que diz: eu não sou cachorro não... pra me tratares assim... Coincidência, a cultura brasileira ou a inglesa, apresentam esta aceitação tácita que eu comecei a combater há muito pouco tempo, aliás. E é justo, neste pequeno detalhe que insistiria na necessidade de nossa mudança de lógica. Nós somos seres vivos, os cães são seres vivos e com uma inteligência emocional fortíssima. Deveríamos pensar em trocar as palavras de Dan por algo como : eu sou um homem, e assim como um cão merece ser respeitado,  eu também mereço nem mais nem menos, ser respeitado. Os animais são nobres, e eu me torno mais humano, no momento que eu perceber que todos pertencemos à mesma natureza, sendo filhos da mãe terra que nos acolheu a todos igualmente oferecendo as condições básicas para sermos seres vivos (calor, ar, alimento).

Parte 2  Clara Amélia Oliveira
Eu, Daniel Blake mostra como a tecnologia dá suporte às pessoas que necessitam entrar em portais do governo, na internet.  Na semana passada passei pelo sofrimento, idêntico ao de Daniel Blake, ao entrar no portal do INSS, do qual sou pensionista, e, no portal do MEC, onde tenho minha aposentadoria. Na Inglaterra, ou no Brasil, os procedimentos, e padecimento, são exatamente os mesmos. E os portais chegam à ironia de criar um amiguinho virtual que se propõe a te ajudar. Esqueci o nome da amiga virtual do portal do INSS que tentei acessar ontem. Ela indica os passos que, na prática, não dão certo, a não ser para os nerds, coisa que eu não desejo me tornar. Hoje acessei o site novamente tentando encontrá-la, apenas para citar seu nome aqui, e nada. Ela não apareceu de jeito nenhum. Da mesma forma, no portal da UFSC, tentei entrar também e eles exigem, por segurança, que você dê umas respostas não usuais, tipo, lembrar uma escolha, feita há anos, entre oito categorias de livros. Claro, como tenho mais de uma categoria preferida, esqueci qual indiquei e preenchi errado. Naquele momento, não estava com minha caderneta de 250 senhas e detalhes complementares exigidos para acesso a sistemas. Assim, bloqueada, tive que ir a um especialista para fuçar e recuperar meu contato. É como diz o popular, fui... deu... encheu...overflow... Pode-se refletir sobre em que a tecnologia contribuiu para a qualidade de vida do cidadão comum? Ela criou um mundo paralelo, igualmente ameaçador, onde você é perseguido pelos hackers, onde você é bloqueado, se não se comportar do jeito que é exigido, ou seja, como um especialista. No meu caso, nerds internacionais se apossaram da minha senha do ResearchGate, onde tenho registradas minhas pesquisas e bagunçaram tudo. Lá consto, agora, como pesquisadora na área da Saúde. Mas não consegui entrar no site para corrigir. Recebo periodicamente e-mail destes hackers me ameaçando e pedindo dinheiro por causa desta senha. Eu fico dando gargalhadas histéricas. Deixei tudo assim mesmo, e faz tempo. Agora o desabafo final. Toda dificuldade que nos é colocada é pelo nível de detalhes, sem real relevância. Pergunta-se porque cada portal de sistema não respeita nenhum tipo de padronização que ajudasse a você migrar de um sistema para outro? Afinal são detalhes comuns e procedimentos diferentes. Inovação em detalhes. Falsa inovação. Eles não pensam que cada usuário tem de conviver e acessar 3,4,5 sistemas diferentes? E é nesta direção da inovação (focada em particularidades de detalhes) que a socióloga francesa Françoise Cros chamou nossa atenção. Ela nos diz que quando a inovação se converte em valor (valor monetário visando o lucro), a lógica criada nos leva a situação que estamos enfrentando hoje no mundo. Somos vítimas da competição entre sistemas, entre os projetistas de sistema. Por exemplo, o Word do sistema Macintosh é diferente do Word do sistema MS-DOS. Qualquer um dos dois satisfaria, mas você tem de brigar e gastar tempo nos detalhes de cada um deles. E chegamos no âmago do meu stress pessoal - os detalhes. Tudo funcionaria bem e você poderia dar conta perfeitamente, mas tem aquele pequeno detalhe. Aquela vírgula que detona um sistema e você fica rodando em círculos. Foi a isto que a tecnologia nos levou. Foi para isto que estudamos tanto? Para concluir, gostaria de contar um segredo. Muitos jovens entram para a carreira tecnológica imbuídos do sonho de mudar o mundo. Este foi o meu caso, e também de muitos dos meus alunos do curso de Ciências da Computação. Mas a lógica de poder do sistema geral vem adoecendo o mundo e nossa civilização, dita moderna e a tecnologia é apenas uma parte de tudo isto.

Reflexões de Clara Pelaez Alvarez

Pessoas obedientes são invisíveis para o Estado (qualquer um, independente da ideologia que o guia), são apenas números. O Estado só enxerga as redes dominantes e os culpados, os rebeldes que normalmente estão na periferia da rede social.
Quem passa a vida obedecendo as regras impostas pela rede dominante é educado a olhar apenas para seu próprio umbigo. Desde cedo aprendem que precisam trabalhar para alguém para conseguir seu sustento. Olham com profunda desconfiança para os rebeldes que não se adequam ao sistema, para os outros que não vivem como eles. E se uma pessoa passa por dificuldades a única culpada é ela mesma, nunca a sociedade.
Todos conhecemos alguém que não para nos empregos, nem consegue empreender um negócio. Todos olhamos e pensamos: “fulano(a) não tem jeito mesmo”, “ele que não me peça mais nada, porque chega”, “ele está pensando que vou trabalhar para ele levar a vida na boa? Sem chance.”. A culpa é sempre do indivíduo (do outro). Nunca pensamos na sociedade como injusta e cruel, nem consideramos que com nossas atitudes de complacência somos todos responsáveis por este estado de coisas. Nós somos o sistema.
Até que um dia, um Daniel Blake da vida descobre que aquela sociedade à qual sempre foi obediente não quer saber nem dos problemas, nem da existência dele. Aí ele deixa de ser um obediente invisível e passa a ser um culpado. Só então a mente embotada começa a perceber que talvez as coisas não sejam como ele aprendeu. Tarde demais chega a rebeldia e com ela a morte, porque é exatamente esse o destino dos rebeldes sociais: o ostracismo, a cadeia ou a morte. Rebeldes sempre pagam um preço muito alto.
E, no entanto, se a sociedade evoluiu isso se deve aos rebeldes de todos os tempos, pois toda mudança social começa com uma pessoa ou com um pequeno grupo de pessoas. Nosso poder é sempre muito maior do que imaginamos, embora a mudança cobre sempre lágrimas, suor e sangue.

 Refletindo sobre leituras ingênuas. Edna Domenica Merola

A leitura do filme Eu Daniel Blake me fez refletir sobre uma questão (a princípio colocada sobre a recepção estética): uma pessoa idealista (democrata) faz uma leitura ingênua, conservando esperanças de um final feliz? 
Quanto à recepção estética, podemos dizer que sim. E que, no desenlace, a esperança se transforma em tristeza na melhor das hipóteses. Podendo ser intermediada por sentimentos de revolta e/ou culpa. Acrescente-se que a catarse do espectador não sofre nenhum prejuízo social por revelar rebeldia. Acaba funcionando como mecanismo mantenedor do status quo.
Mas, nesse momento social, há leitores de outra inclinação ideológica e que têm exacerbado ideais de exclusão. Esses podem ter torcido para o Daniel Blake se dar mal e ainda ter invocado algum anjo que com sua espada o decepasse (usei um efeito retórico? Perdoem!). Tempos feios! Mas o filme é muito bonito (confiram).


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Lendo cinema II

Lendo cinema I

terça-feira, 16 de junho de 2020

Lendo Cinema II

Mediação de Brígida de Poli

LENDO CINEMA – II

Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação. (Charles Chaplin)

AS BALEIAS DE AGOSTO (The Whales of August)

Direção: Lindsay Anderson  ( 1987)


As velhas irmãs Libby (Bette Davis) e Sarah (Lillian Gish) vivem juntas numa casa ampla no rochoso litoral do Maine, onde costumavam passar o verão desde a infância, sempre de olho nas baleias que aparecem em agosto. Agora Libby está cega e Sarah precisa cuidar dela. Ambas vivem de recordações da família, dos maridos e dos amigos. O sr. Maranov (Vincent Price), um velho nobre russo fugido da Revolução de 1917, passa a visitá-las, mas é rechaçado asperamente por Libby, que teme que ele apenas queira se instalar na casa delas para aproveitar o pouco de dinheiro que ainda possuem.  (Sinopse: Adoro Cinema)


Curiosidades: Este foi o último filme da atriz Lilian Gish, aos 93 anos. Foi também o penúltimo trabalho de Bette Davis que estava com 79 anos. Vincent Price ganhou o papel de Maranov neste filme delicado depois de 25 anos só fazendo filmes de terror.




Link para ver o filme na íntegra:
Reflexões de Clara Pelaez Alvarez

Chama atenção a delicadeza do olhar e da narrativa.
Manuel Bandeira falava sobre esse “desejo infinito e vão de possuir o que me possui”. E parece que é isso que vamos tecendo pela vida: a posse de coisas, de afetos, de ideias. E então, à medida que o corpo murcha vamos descobrindo que o importante mesmo são as pequenas felicidades certas: a beleza das flores, o céu azul, a brisa morna, as baleias de agosto...
As lembranças vão agasalhando a vida que resta. Um dia de cada vez porque o amanhã é mera probabilidade. Que sentido tem viver? Que sentido tem envelhecer? Por que não podemos escolher quanto viver e quando morrer?
A cultura social nos possui tão profundamente que chamamos de liberdade o uso de grilhões. É preciso colocar roupa de festa para jantar, disfarçar o que se quer dizer com sorrisos para que não nos chamem de amargas. Por fora a polidez, a contenção, por dentro os medos dos quais não nos livramos: rejeição e abandono.
Parece que nesta tensão vivemos até o fim: entre a dinâmica da conformidade e o umbral da rebeldia.

Comentários de Clara Amélia de Oliveira
Parte 1:
A primeira coisa que me conectou com o filme foram algumas frases ou diálogos emblemáticos. Vou citar alguns:
“As fotografias perdem a cor. As recordações vivem para sempre.Obs. Eu achei muito verdadeiro. Nunca havia pensado desta forma mas me ajudou a desapegar de tanta fotografia que tenho acumulado.
“Aqui, o sol, a lua, a promessa das baleias. Em Paris, a champagne.” Obs. Achei bem filosófico, mostra diferentes valores dependendo de cada pessoa.
“A lua lança moedas de prata pela costa. É um tesouro que ninguém pode gastar.” Obs. Achei esta frase com um profundo sentido de que coisas muito mais valiosas não se pode pagar ou gastar.
“Se você estivesse aqui Philip. Acho que não vou aguentar muito tempo mais a Libby” (irmã da personagem da Bette Davis sobre a irmã azeda).
Obs. Aqui, eu me dei conta de que é comum procurarmos desculpas: "ah se você estivesse aqui, tudo seria diferente." É muito comum a gente buscar apoio fora de nós, quando quem precisa tomar atitudes somos nós, sozinhas. É um desafio!
Também me chamou a atenção as cenas em que as duas irmãs, tão diferentes, exibiram o mesmo comportamento, abrindo as caixinhas com suas recordações do passado.  Isto faz nos lembrar que somos todos iguais na essência, na alma. 
No final do filme, como era muito comum nos filmes antigos, a personagem azeda tem seu momento de redenção. Confesso que sempre gostei deste tipo de final de filme. Me ajuda a acreditar que as coisas, mesmo as ruins, não são obrigatoriamente para sempre. No momento em que houver o aprendizado, o mundo da pessoa se transforma. É importante, e saudável, ter esperança ser otimista. A redenção da Libby fez ela deixar de resistir a realizar o sonho da irmã de ter uma janela panorâmica. Ela própria encomenda ao marceneiro. Me emociono sempre nestas cenas de redenção e choro.
E, na cena final, as duas irmãs estão no penhasco, espécie de mirante de onde se avista o mar. A irmã azeda (que tb é cega) pergunta se a irmã está vendo as baleias. A resposta foi negativa. “Todas as baleias foram embora”, respondeu a irmã. Então, a outra irmã expressa uma frase também muito profunda: “Nunca se sabe.” Neste momento, é reforçada a sensação de redenção da irmã azeda havendo mesmo uma troca de papéis. A irmã que era boa e tolerante está pessimista, e a irmã azeda, e intolerante, se expressa com otimismo, apoiando a irmã.
Este, nunca se sabe, abre uma brecha para o improvável, que muitas vezes não acreditamos porque temos crenças negativas.
Parte 2:
Pela temática do filme, acabei me recordando de um documentário que assisti há um mês e que trata deste assunto. Pelo desequilíbrio ecológico, as baleias estão se deslocando da costa dos Estados Unidos e Canadá porque estão com fome. Ao se deslocar, estão passando em rotas de navios causando acidentes e morrendo. Os navios têm ordem de navegar devagar, mas não se encontrou uma solução. No filme as irmãs parecem representar esta esperança das pessoas que costumavam conviver com as baleias na sua costa. Se o mundo não tomar juízo, a irmã pessimista, ao dizer que "todas as baleias partiram" nos faz lembrar de algo que eu sinceramente não gostaria (a extinção das baleias).

Lembranças evocadas. Edna Domenica Merola

O tema de As baleias de Agosto me faz lembrar de alguém que já partiu e com quem eu ia olhar as baleias passarem na Praia da Armação, perto do Morro das Pedras.
Faz-me lembrar ainda, de outra pessoa que partiu também e com quem vi golfinhos em alto mar, durante uma excursão de navio.
A tensão no relacionamento entre as irmãs (personagens do filme) pode ser comum à maioria das relações de duplas que conviveram de maneira próxima e em situações difíceis como a de uma doença prolongada.
As tensões se resolvem, se dissolvem, desaparecem. Permanecem as boas lembranças.
E a saudade.


SOBRE BALEIAS E SORORIDADE, POR BRÍGIDA DE POLI

Embora muito próximas, as irmãs Libby e Sarah vêem a vida de formas distintas. A primeira, agora cega, é amarga e ranzinza. Não entende porque a irmã quer uma janela maior de frente para o mar na velha casa do Maine, onde passaram a infância e costumavam esperar a chegada das baleias de agosto. Sarah cuida da irmã, do jardim, conversa com os vizinhos e mantém a mesma doçura da juventude. Libby reclama de tédio e que gostaria de voltar à casa da cidade.
Uma cena nos revela algo importante: as duas já eram assim antes de envelhecer. Na cena elas conversam sobre os cônjuges, já mortos, e Libby ironiza que Sarah vivia aos beijos com o marido. Ela inclusive costuma celebrar o aniversário todos os anos com a foto do esposo, a música do casal e um cálice de licor. Sarah curte o passado, os bons momentos e continua serena e feliz. Já Libby hostiliza até um vizinho que vai visitá-las, dizendo que a casa delas não será refúgio para o também viúvo. Talvez por medo de perder a companhia e os cuidados que Sarah lhe dedica Libby ameaça ir embora, em clara chantagem sentimental.
Mais tarde em uma crise de consciência vemos Libby autorizando a construção da janela maior, desejo da irmã. Na cena final as duas vão até o local onde sempre costumavam avistar as baleias. Os animais não estão lá, mas Libby incentiva Sarah a acreditar que elas vão aparecer. É um momento terno e de reforço dos laços entre as duas irmãs.
Entre muitas indagações que me ficaram: agora na meia idade sou mais Libby ou mais Sara? Ficamos mais sábias e melhores na velhice? Laços como os das duas irmãs são indestrutíveis? Minha mãe tinha cinco irmãs, algumas “Libby”, outras “Sara”. Algumas sempre se doando, outras ranzinzas e voltadas para si mesmas. Mas, mesmo entre “tapas e beijos”, nunca se separaram. Hoje, apenas duas ainda estão vivas e mais unidas que nunca, lamentando sempre a ausência das outras quatro que já partiram.
(Brígida de Poli)



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Lendo cinema I

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Lendo Cinema I. O Jantar

O autor escreve o livro, o roteirista dá forma cinematográfica ao texto, o diretor junta os pontos e faz a “mágica”, o montador finaliza. Independente do que a equipe pretendeu, o espectador vai “ler” o filme a partir de suas referências e vivências.
Brígida de Poli

O Jantar (The Dinner) – direção: Oren Moverman- 2017
Esta é a terceira adaptação do best seller homônimo de Herman Koch para o cinema. Há uma versão holandesa (Het Dinner/2013), uma italiana (I nostri ragazzi/2014) e esta americana de 2017.

Sinopse: Dois casais se reúnem para jantar em um sofisticado restaurante. Os homens são irmãos com maneiras diferentes de olhar o mundo e carregam conflitos que vêm da infância. Um deles, Stan Lohman (Richard Gere) é um bem-sucedido candidato a governador casado pela segunda com Katelyn Lohman (Rebecca Hall) e o outro Paul Lohman(Steve Coogan) é professor, casado com Claire (Laura Linney). Entre um prato refinado e outro se fica sabendo o verdadeiro motivo do encontro: os filhos deles se envolveram em um incidente aos poucos revelado. É posto um dilema moral e surgem divergências de opinião sobre como os pais agirão para resolver o problema.

Brígida de Poli



Comentários de Edna Domenica Merola
O filme O Jantar aborda vários  problemas da sociedade contemporânea: políticas públicas em relação aos indivíduos considerados “loucos”, convivência/violência/cuidado na família, estabelecimento de limites na educação de adolescentes, exemplo de atitudes violentas dadas pelos pais aos seus filhos, adoção, racismo, “lei” do mais forte (homem, branco, rico), papel impingido à mulher de mentora da afetividade familiar e da educação dos filhos e proteção parental da imagem dos filhos.
A narrativa do jantar consiste de diálogos dos quais participam dois casais (marido e esposa) dos quais os homens são irmãos (o professor Paul Lohman e o Deputado Stan Lohman), a equipe de assessoria política do deputado e a equipe de funcionários do restaurante. 
A narrativa do jantar é permeada de flashbacks trazendo personagens ausentes, tanto apenas citados verbalmente quanto em cenas que se interpolam às do jantar.
Um crime cometido pelos filhos dos casais também é narrado de maneira intermitente.
Tal trato temporal esfacela a continuidade, de maneira que nada mais poderá ser usufruído com o prazer que lembre a  integridade ou que evoque a plenitude.
Pelo contrário, trata-se de uma narrativa que sugere a passagem do tempo líquido vivido por pessoas sem autenticidade e idoneidade (das quais se conhecem apenas as imagens politicamente corretas que almejam passar).  Esses personagens retratados são cultos, polidos, da classe média e alta. São incapazes de trocar sentimentos de amor e amizade. Mas capazes de acusar uma moradora de rua (que foi assassinada) pelo crime da pobreza.
(Qualquer semelhança dessa ficção com a realidade seria mera coincidência?).


Reminiscências  de Yara Hornke

Filhos pequenos,  8 anos, eu vindo do serviço, encontro um grupo de colegas delas mesma idade barbarizando um gato... Fico indignada, me revolto e discutindo com eles que botam fogo no rabo do gato, digo vocês já se puseram no lugar dele? , se chegasse um alienígena e fizesse isso com vocês...?

O gato fugiu atordoado com a tortura, os meninos ficaram sem graça com essa tia que estragou a brincadeira...

Quando contei para os meus filhos o que presenciara eles falaram mas mãe, todo mundo faz isso... e eu disse  - não apoio tortura...

Na cena do crime quando os garotos jogam lixo na mulher  vi a mesma expressão de prazer e divertimento  com a dor do outro que aqueles meninos expressavam  vendo o sofrimento do gato.

Na verdade era um treinamento de valentia, de coragem, de valores masculinos...? Mas talvez eu tenha contribuído para desautorizar esta prática.  Quem sabe.
Tá certo eu já matei formiga, mato baratas ...
Hoje sei que o exercício da violência pode ocorrer no comportamento do grupo, da turba que participa de um linchamento. E é comum nas situações de guerra. E aí pobres das vítimas... muitas vezes, mulheres e crianças, violentadas inclusive sexualmente, como nas práticas do Estado Islâmico ,  do Boko Haran  ou na guerra da Bósnia. Tempos de horror...
Mas vamos  ao filme:
... os personagens marcados como brancos, poderosos, Stan político destacado faz  contra ponto com Paul dado como ezquisofrênico (só podia) quando põe em dúvida  os feitos históricos de seu País e das  tantas guerras com motivação duvidosa. Quanto a Stan único a manter uma posição moralmente aceitável, não negando o crime me pareceu, no entanto, sem emoção em sua indignação quanto a esconder o crime. Na verdade, um crime deste, a sociedade americana não perdoa.  As mulheres protegendo as suas crias se apequenam, reproduzindo acriticamente o papel tradicional que a sociedade lhes impõem.
Não é um filme feminista.

Pensando no nosso Brasil, me pergunto como será que os pais dos jovens que queimaram o índio Galdino em Brasília se portaram... não na imprensa, publicamente mas de verdade no “recôndito de seus lares”...
Aqui na nossa terrinha, os crimes semelhantes dos filhos da burguesia costumam ser naturalmente encobertos e não julgados. Lembram-se da Aracelli? 
Aliás, nosso País coleciona crimes não julgados,  contra os indígenas, contra os negros escravizados...o aniquilamento de todos os que se rebelaram contra a injustiça, os crimes da ditadura e dos torturadores  e os recentes,  de Amarildo ou da Marielle Franco.
E sobre o drama, a armadilha da contradição entre o público e o privado entrelaçado com as relações e afetos familiares o filme é muito bom .
E aí me vem a memória a lembrança das mães nas filas dos presídios. Embora denunciem os trâmites da Justiça, a corrupção policial e os maus tratos, sempre falam que os erros cometidos por seus filhos tem que ser punidos e que, desgraçadamente,  eles tem que cumprir suas penas. Algumas dizem que a cadeia até tem que ser dura mesmo, pois “senão eles não apreendem.”

Comentários de Clara Amélia de Oliveira sobre alguns pontos específicos analisados sob o  ponto de vista da Complexidade
 1- O surto do professor Paul Lohman, onde ele reclama dos alunos e questiona a própria visão da história americana. Nas cenas ele parece frustrado com a indiferença e imaturidade dos alunos. Mas falta ali algo. Falta questionar a própria pedagogia tradicional (o ambiente e tipo de aula expositiva que é mostrado nas cenas. A pedagogia tradicional e que está ultrapassada, mas as escolas não pensam em mudar. Foco no conteúdo e não no desenvolvimento humano). Paul poderia (e deveria) se questionar e pensar em mudar sua própria metodologia de ensino, pois ela está sendo a fonte do problema. Digo isto porque decidi trabalhar com os alunos considerados problema, e o fiz por 12 anos, colhendo resultados que me fazem acreditar profundamente na potencialidade humana e necessidade de mudanças de método.
2- A questão do distanciamento entre pais e filhos ( coisa corriqueira hoje em dia) Há o genuíno sofrimento dos pais, que não sabem como tratar as consequências da super proteção que deram aos filhos. E parecem enredados em um redemoinho de acontecimentos que vem à tona com a divulgação de um vídeo de um assassinato. Os pais conseguem sofrer por isto, mas não conseguem enxergar a necessidade de mudanças de atitude saindo fora da lógica geral do sistema estabelecido  atual e focando em como resgatar estes filhos.
3- O caso da moral do Político Stan Lohman que resolve desistir de sua missão por ter um caso de família, até então secreto, que suja seu currículo. Este fato pontua bastante a lógica de evento isolado, onde o certo x errado  é tudo que se alcança. No caso, errado, moralmente exclui o político de seu trajeto pessoal. Neste ponto, surge outra questão, Stan não tem dúvidas sobre sua necessidade de abandonar a candidatura para governador. Mas quem é Stan, qual seu currículo e seu projeto? Ele pode estar abandonando a candidatura em favor de um outro candidato mau caráter, e, que não vai trazer uma contribuição à sociedade. Isto poderia significar uma perda grande, caso Stan seja um cara do bem e, por exemplo, seus concorrentes sejam menos adequados. Ele parece idôneo porque está colocando a moral acima das outras coisas. Mas estas outras coisas (como citei) podem afetar o contexto histórico, não apenas a questão moral pessoal.
4- E no caso do assassinato da senhora pelos jovens. Trago dúvidas pesadas para pensarmos. Analiso sob o ponto de vista Complexo, que transfere a lógica de evento para a lógica de processo. Veio-me a memória uma das histórias conhecidas de Buda onde ele com sua reflexão iluminou o assassino Angulimala e o aceitou como seu seguidor, sem julgá-lo pelo seu passado. 
História do Agulimala
 Angulimala (“homem do colar de dedos”) foi um homem que sofreu maus tratos da sociedade e decidiu se vingar. Prometeu matar mil homens, e fazer um colar com dedos de cada vítima. Ele conseguiu 999 dedos e faltava apenas um quando encontrou Buda no caminho. Ao ameaçar Buda, este na iminência de morrer pelas mãos do assassino famoso já, Angulimala, fez a ele um pedido derradeiro. Pediu a Angulimala que cortasse com sua espada afiada um galho de uma árvore próxima. Angulimala trouxe o galho para Buda. E este pediu que Angulimala recolocasse o galho na árvore novamente. Angulimala disse ser impossível. Buda então esclarece que destruir, com uma espada na mão é fácil e rápido. Mas, ao contrário, construir, é um processo muito mais trabalhoso. Neste momento Angulimala, se iluminou e percebeu que estava no caminho errado. Buda aceitou-o sem julgá-lo pelo seu passado assassino. E, Angulimala, passou a ser seguidor das idéias budistas.
Este raciocínio budista não é possível de ser absorvido dentro do sistema tradicional, pautado em evento. 
Na trama de O Jantar, houve um assassinato no passado, em data futura, os parentes (o político Stan) verá  ameaçada sua carreira.
5- Conclusão: Então, existiria uma pedagogia para pensar na reabilitação e conversão das almas humanas? Como trabalhar a pessoa para ganhar consciência, ajudá-la a seguir num caminho que é um processo onde os eventos estão interconectados e não um caminho onde ocorre uma série de eventos isolados? No caminho complexo, na verdade, a dinâmica do processo dissolve o passado dentro do princípio da incerteza, tudo pode mudar, inclusive para o bem.

Eu e Paul, Paul e eu
Eu me identifiquei bastante com o Paul. Sua insegurança e incertezas deram a ele um perfil mais humano do que os demais personagens. Associei com o personagem do Joachim Phoenix no filme Coringa.
O roteiro da história vai sendo exposto e me pegou no meu stress existencial, que está em alta, nesta quarentena. Tive sentimento de agonia ao perceber a exposição do complexo personagem Paul Lohman. Paul parece ser o anti-sistema. Mas tampouco Paul parece entender o que fazer com isto. Como agir fora deste sistema que o magoa.
O filme, ao retratar Paul, expõe o mosaico de emoções construído por uma pessoa, juntando desde os dramas não resolvidos de infância, e da sua visão adulta sobre o mundo, resultando no que somos enfim, este caos. Morin chama, esta resultante de fatores complexos, de ‘emergência’ . Na figura do Paul, percebemos como cada uma das fases da vida interferem na vida adulta, de forma subliminar. Cada fase se faz presente, de forma descontrolada, travando ou jogando uns contra os outros. 
Paul, ao questionar guerras e racismo, dispara raciocínios, alguns ambíguos, dignos de um perturbado, mas que revelam a lógica geral do sistema que influencia e para alguns, governa nossas mentes. E, nesta sociedade já com fortes indícios de caos, se revela que o louco parece ser o verdadeiro são, aquele que não deseja se submeter. E, aquele que é considerado o normal, literalmente, que está na norma, é o que segue o fluxo, sem questionar para onde está sendo levado. As reflexões do Paul são pertinentes pois abrem espaço para ser questionado. Ou seja, levanta questões que devem ser encaradas, e amadurecidas e mesmo modificadas, dentro de um processo dinâmico. 

Racismo
O filme ainda aborda as questões do racismo, da impiedade e de como a sociedade hegemônica americana, doente, faz seus cidadãos perseguirem uma trajetória de poder e dominação simbólica do sonho capitalista falido.  Como neste contexto o ser humano desaparece no vazio e os, praticamente zumbis humanos, não conseguem levantar os olhos para além de seu próprio umbigo-ego.
A cena de amor universal:
O momento resgate da alma sofrida de Paul Lohman. Este momento se traduziu na cena do amor fraternal demonstrada pelo Paul, o personagem perturbado, ao sair do jantar. Foi uma cena curta, alguns segundos. Mas, ali, por um curto momento, fez-se a paz na alma adoecida e subversiva de Paul Lohman. Relato dos fatos que precederam a única cena de luz que eu pude observar no filme. Paul, ao sair de casa, contrariado, porque não queria  ir ao jantar, no Restaurante de luxo, a convite de seu irmão Stan, chegou lá procurando ser crítico e agredindo, com palavras ácidas, o maitre do Restaurante, que fazia os protocolos de descrição das comidas, apresentando a carta de vinhos, etc. ... Porém, ao sair do jantar, o maitre, na porta de saída, educadamente estende a mão para se despedir deste cliente, Paul, e este surpreende, ao corresponder, dando-lhe um abraço afetuoso. Aquele abraço que cura feridas da alma. Porque Paul fez isto? Porque Paul, como todos nós, é potencialmente bom. Ali, foi a alma de Paul que falou por ele. Linda e emocionante cena. Comovente.
A tragédia grega:
A parte final do filme, quando Paul sai para resolver o problema com seu sobrinho Beau, adotado por seu irmão, e responsável pelo drama que resultou no jantar de negociação entre os familiares, vai tomando ares de tragédia grega. Paul, ao perder lances das conversas que tornariam desnecessário sua medida extrema de corrigir Beau, sai em busca do sobrinho, para usar o método tradicional do enfrentamento direto. A cena trágica se revela ao se ver Paul pegar uma pedra e vemos a possibilidade da tragédia acontecer.  Tudo se desenrola rápido, tudo poderia ter sido diferente. Aquele ar de tragédia grega, onde o absurdo e a impotência humana diante do mal, se apresenta diante de nós.


Comentários de Oleni Oliveira Lobo
Quando família se reúne geralmente é para fortalecer vínculos e criar intimidade. Para isto o aprofundamento das relações, o mergulhar fundo faz emergir situações conflitantes que necessitam ser afloradas.
Irmãos. pais e filhos, valores, éticas, questões fortes e aplicadas em atitudes e em suas rotinas? Uma diferença grande entre falar, fazer e mostrar.
Um simples atraso é uma falta de respeito, tanto quanto não ficar à mesa para seguir  a conversa iniciada, cujo sinônimo chamado falta de atenção, causa dor no outro.
Surgem competição e inveja, infelizmente, substituindo a cumplicidade, a parceria e o amor.
Pais que escolhem ter filhos e não assumem tal papel, apenas os têm para ganhar amor da família e sociedade e quando isto não acontece cobram do outro atitude igual. Adoção: que ato lindo! Principalmente quando a escolha é a diversidade. Triste quando é apenas pela pontuação mais forte, quando se escolhe a criança de raça e cor diferente ou com algum problema físico. Cada pai arruma uma desculpa para o conforto de confrontar a criança para educar, disciplinar e deixar despertar seu melhor, entretanto é tão mais fácil arranjar desculpas para deixar para lá e substituir tudo isto por “passar a mão na cabeça” o que aumenta e acumula os conflitos e comportamento de infelicidade dos filhos sem desenvolver sua força, sua habilidade para conviver em sociedade, respeitando o outro e sabendo distinguir o que é certo do que é errado. Qual é o limite da liberdade? Tudo tem consequências. Qualquer escolha que se faça teremos que aceitar o luto por outras tantas e isto aprendemos lidando com as frustrações de alguns nãos.
Surge o profissional que não aceita a evolução das coisas e o rematrizar-se diante do novo realizando o casamento entre a experiência e  o novo, criando algo novo. Caso contrário, só restam as críticas sem propostas: assume-se o papel do rebelde sem causa. Sua luta é pelo “deixa como está”.
 Doenças genéticas que querem deixar enterrada e caso alguém demonstre que algo está começando a surgir, negam até ficar insustentável, pois é melhor abafar do que cuidar, prevenir e buscar ajuda médica de imediata.  Ainda no comecinho quando algo pode ser feito de forma mais tranquila.
Triste decisão em brincar com a vida  de alguém sem nome , mas com certeza com uma história. Alguém que “tudo pode” mata um ser humano como se pisasse em um inseto. Infelizmente, há a crença de que é merecedor aquele que produz e que tem uma vida parecida com a nossa. Uma pena.
Uma pessoa acostumada a receber tudo, nem pensa que tenha cometido um erro e a única preocupação é sair ileso.
De repente, uma ameaça de alguém da própria família exige que a situação seja vista com justiça e todos arquem com as consequências.
Como pode fazer isto com um filho? Prisão? Tão jovem! Foi jovem ao matar? Tirar uma vida?
O que será que foi transmitido a estes filhos enquanto crianças? Chantagem é correto? Afinal a pessoa fez algo errado e se pode obter lucro através disto?
Está doente? Como ninguém percebeu?  Quanto mais próximo de alguém menos a enxergamos, é necessário um certo afastamento e querer “ver” e aproximar-se para poder envolver o outro para que aprenda algo. É fácil? Com certeza, conviver é difícil demais e entre pais e filhos muito mais! Pais querem errar? Claro que não querem dar o melhor a seus filhos, entretanto, nesta ânsia, impedem que vivam e aprendam. Sabe aquele joguinho que deixa o filho ganhar  “burlando as regras?” Teu filho está percebendo e aprendendo que pode quebrar regras e que o importante é vencer.
Muitas vezes dois irmãos conseguem sucesso na vida, um com sua vida simples e tranquila, outro com sua vida financeiramente confortável e cheia de glamour. O difícil é acreditarem que os dois tem sucesso. Infelizmente, as pessoas são guiadas a valorizar quem chega no topo financeiro, sem se importar de que forma chegaram. Muitas chegam através da luta, mas não será o dinheiro que dará felicidade. Ser amado, ter amigos de verdade, pois isto não se compra.
Uma questão muito importante nasce deste filme: pessoas vivem sem ideais, metas e objetivos? Porque seriam importantes?
Filme forte e muito bom para reflexão.



COMENTANDO OS COMENTÁRIOS
                               Brígida de Poli
O filme é o mesmo, mas como previsto cada uma de vocês usou uma abordagem diferente. Obviamente, percebemos a obra alheia a partir das nossas experiências e visão de mundo. Mas todas as análises foram muito interessantes !
Várias coisas interferem na análise de um filme. A maior bilheteria de todos os tempos, “E o vento levou” (Victor Fleming), está na meio de uma polêmica 80 depois de seu lançamento. O filme favorito de várias gerações, premiado com oito Oscars, é visto agora como extremamente racista. Juntando-se aos protestos contra o racismo nos EUA, espectadores forçaram a retirada de “E o vento levou” da plataforma da HBO. Passaram-se décadas até nossa “ficha cair”. Além da trama em si estar sendo contestada, o filme fez história por dar o primeiro Oscar a um intérprete negro, a coadjuvante Harriet McDaniel. A abnegada empregada de Scarlett O´Hara  era o retrato da subserviência aos patrões brancos. Pra piorar, Harriet foi proibida de entrar no teatro onde haveria a premiação por causa da cor da pele. Depois de Oscar, ela nunca mais conseguiu bons papéis. Moral da história: como as pessoas interpretarão os pais de “O Jantar” daqui a 80 anos?
Voltando ao nosso filme: somos colocados diante do dilema de “como agiríamos se fossem os NOSSOS filhos”. Nosso discurso sobre o certo e o errado se sustenta na prática? Confesso: não os tenho, mas quando cogito a respeito, acho que os protegeria.
A versão italiana de “O Jantar” ( I nostro ragazzi/2014) traz um aspecto diferente do que assistimos agora. O casal rico quer proteger os próprios filhos e o irmão questionador acha que eles devem ser punidos. Tudo muda quando ele e a esposa descobrem que os filhos que realmente cometeram o crime eram os dele. Aí eles se colocam contra o castigo e chegam a provocar um acidente de carro com o irmão/cunhada.
Bem, poderíamos encontrar novos vieses cada vez que revíssemos “O Jantar”. Parabéns a todas pela profundidade da análise. Vamos ao próximo ???
Brígida De Poli - jornalista, cronista, cinéfila, colunista do Portal Making Of  http://portalmakingof.com.br/cine-e-series . Simpatizante e voluntária em prol dos direitos e do bem-estar de refugiados. Idealizadora e mediadora do Lendo Cinema, autora do livro As Mulheres de Minha Vida, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-mulheres-da-minha-vida/