terça-feira, 23 de junho de 2020

Lendo Cinema III



Abertura por Brígida de Poli
jornalista, cronista, cinéfila, colunista do Portal Making Of  http://portalmakingof.com.br/cine-e-series . Simpatizante e voluntária em prol dos direitos e do bem-estar de refugiados. Idealizadora e mediadora do Lendo Cinema, autora do livro As Mulheres de Minha Vida, Coleção Palavra de Mulher, Editora Insular https://insular.com.br/produto/as-mulheres-da-minha-vida/
“(...) O Estado não quer ou não pode proteger o cidadão. Por isso cria a ilusão de que, se você é pobre, a culpa é sua. Porque você não preencheu seu currículo direito ou chegou tarde a uma entrevista”.  (Ken Loach)
EU, DANIEL BLAKE
Direção: Ken Loach – Reino Unido (2016)
Nosso 3° filme se passa na Inglaterra, mas lembra muito o que acontece no Brasil, principalmente agora em tempos de auxílio emergencial. Burocracia, previdência social falha, falta de políticas públicas que protejam o cidadão que mais precisa. Esta é a realidade em que vive Daniel Blake, um viúvo impedido de trabalhar depois de um enfarte. Durante sua maratona para conseguir o seguro desemprego, ele conhece Katie, uma mãe solteira que cuida de dois filhos. Eles unem esforços pela sobrevivência.
O diretor Ken Loach sempre põe o dedo na ferida e sem apelar para o melodrama, mostra as dificuldades da pessoa comum num mundo globalizado. Seu filme mais recente “Você não estava aqui” (2019) fala da uberização da vida. Loach tenta melhorar o mundo, fazendo o que sabe: cinema.
Bóra lá assistir e escrever?


Sentimento Experimentados. Clara Amélia Oliveira

Este filme para mim se resumiu a dois sentimentos. Sufocante (porque real, expõe um sistema doente mas cuja lógica não se conseguiu quebrar até hoje) e deprimente (porque mostra quanta humanidade há nos seres vilipendiados pelo sistema). Chorei muito.
Mas o ponto que decidi analisar, foi um pequeno detalhe no discurso que a amiga de Dan leu no dia da cerimônia da morte dele. Ela leu as palavras que Dan deixou por escrito (o discurso de defesa que ele iria apresentar ao sistema que se negava a pagar-lhe a licença por doença). Daniel disse: eu sou um homem, não sou um cão. Isto me tocou fundo pois tenho lutado para mudar, na minha cabeça, a lógica que aceita que possamos tratar mal a um cão, é aceitável, enquanto deveríamos ter respeito pelo ser humano. Este desprezo implicitamente aceito tem que ser repensado. Com este mesmo sentido das palavras de Dan existe aquela letra de música brega de Waldick Soriano, que diz: eu não sou cachorro não... pra me tratares assim... Coincidência, a cultura brasileira ou a inglesa, apresentam esta aceitação tácita que eu comecei a combater há muito pouco tempo, aliás. E é justo, neste pequeno detalhe que insistiria na necessidade de nossa mudança de lógica. Nós somos seres vivos, os cães são seres vivos e com uma inteligência emocional fortíssima. Deveríamos pensar em trocar as palavras de Dan por algo como : eu sou um homem, e assim como um cão merece ser respeitado,  eu também mereço nem mais nem menos, ser respeitado. Os animais são nobres, e eu me torno mais humano, no momento que eu perceber que todos pertencemos à mesma natureza, sendo filhos da mãe terra que nos acolheu a todos igualmente oferecendo as condições básicas para sermos seres vivos (calor, ar, alimento).

Parte 2  Clara Amélia Oliveira
Eu, Daniel Blake mostra como a tecnologia dá suporte às pessoas que necessitam entrar em portais do governo, na internet.  Na semana passada passei pelo sofrimento, idêntico ao de Daniel Blake, ao entrar no portal do INSS, do qual sou pensionista, e, no portal do MEC, onde tenho minha aposentadoria. Na Inglaterra, ou no Brasil, os procedimentos, e padecimento, são exatamente os mesmos. E os portais chegam à ironia de criar um amiguinho virtual que se propõe a te ajudar. Esqueci o nome da amiga virtual do portal do INSS que tentei acessar ontem. Ela indica os passos que, na prática, não dão certo, a não ser para os nerds, coisa que eu não desejo me tornar. Hoje acessei o site novamente tentando encontrá-la, apenas para citar seu nome aqui, e nada. Ela não apareceu de jeito nenhum. Da mesma forma, no portal da UFSC, tentei entrar também e eles exigem, por segurança, que você dê umas respostas não usuais, tipo, lembrar uma escolha, feita há anos, entre oito categorias de livros. Claro, como tenho mais de uma categoria preferida, esqueci qual indiquei e preenchi errado. Naquele momento, não estava com minha caderneta de 250 senhas e detalhes complementares exigidos para acesso a sistemas. Assim, bloqueada, tive que ir a um especialista para fuçar e recuperar meu contato. É como diz o popular, fui... deu... encheu...overflow... Pode-se refletir sobre em que a tecnologia contribuiu para a qualidade de vida do cidadão comum? Ela criou um mundo paralelo, igualmente ameaçador, onde você é perseguido pelos hackers, onde você é bloqueado, se não se comportar do jeito que é exigido, ou seja, como um especialista. No meu caso, nerds internacionais se apossaram da minha senha do ResearchGate, onde tenho registradas minhas pesquisas e bagunçaram tudo. Lá consto, agora, como pesquisadora na área da Saúde. Mas não consegui entrar no site para corrigir. Recebo periodicamente e-mail destes hackers me ameaçando e pedindo dinheiro por causa desta senha. Eu fico dando gargalhadas histéricas. Deixei tudo assim mesmo, e faz tempo. Agora o desabafo final. Toda dificuldade que nos é colocada é pelo nível de detalhes, sem real relevância. Pergunta-se porque cada portal de sistema não respeita nenhum tipo de padronização que ajudasse a você migrar de um sistema para outro? Afinal são detalhes comuns e procedimentos diferentes. Inovação em detalhes. Falsa inovação. Eles não pensam que cada usuário tem de conviver e acessar 3,4,5 sistemas diferentes? E é nesta direção da inovação (focada em particularidades de detalhes) que a socióloga francesa Françoise Cros chamou nossa atenção. Ela nos diz que quando a inovação se converte em valor (valor monetário visando o lucro), a lógica criada nos leva a situação que estamos enfrentando hoje no mundo. Somos vítimas da competição entre sistemas, entre os projetistas de sistema. Por exemplo, o Word do sistema Macintosh é diferente do Word do sistema MS-DOS. Qualquer um dos dois satisfaria, mas você tem de brigar e gastar tempo nos detalhes de cada um deles. E chegamos no âmago do meu stress pessoal - os detalhes. Tudo funcionaria bem e você poderia dar conta perfeitamente, mas tem aquele pequeno detalhe. Aquela vírgula que detona um sistema e você fica rodando em círculos. Foi a isto que a tecnologia nos levou. Foi para isto que estudamos tanto? Para concluir, gostaria de contar um segredo. Muitos jovens entram para a carreira tecnológica imbuídos do sonho de mudar o mundo. Este foi o meu caso, e também de muitos dos meus alunos do curso de Ciências da Computação. Mas a lógica de poder do sistema geral vem adoecendo o mundo e nossa civilização, dita moderna e a tecnologia é apenas uma parte de tudo isto.

Reflexões de Clara Pelaez Alvarez

Pessoas obedientes são invisíveis para o Estado (qualquer um, independente da ideologia que o guia), são apenas números. O Estado só enxerga as redes dominantes e os culpados, os rebeldes que normalmente estão na periferia da rede social.
Quem passa a vida obedecendo as regras impostas pela rede dominante é educado a olhar apenas para seu próprio umbigo. Desde cedo aprendem que precisam trabalhar para alguém para conseguir seu sustento. Olham com profunda desconfiança para os rebeldes que não se adequam ao sistema, para os outros que não vivem como eles. E se uma pessoa passa por dificuldades a única culpada é ela mesma, nunca a sociedade.
Todos conhecemos alguém que não para nos empregos, nem consegue empreender um negócio. Todos olhamos e pensamos: “fulano(a) não tem jeito mesmo”, “ele que não me peça mais nada, porque chega”, “ele está pensando que vou trabalhar para ele levar a vida na boa? Sem chance.”. A culpa é sempre do indivíduo (do outro). Nunca pensamos na sociedade como injusta e cruel, nem consideramos que com nossas atitudes de complacência somos todos responsáveis por este estado de coisas. Nós somos o sistema.
Até que um dia, um Daniel Blake da vida descobre que aquela sociedade à qual sempre foi obediente não quer saber nem dos problemas, nem da existência dele. Aí ele deixa de ser um obediente invisível e passa a ser um culpado. Só então a mente embotada começa a perceber que talvez as coisas não sejam como ele aprendeu. Tarde demais chega a rebeldia e com ela a morte, porque é exatamente esse o destino dos rebeldes sociais: o ostracismo, a cadeia ou a morte. Rebeldes sempre pagam um preço muito alto.
E, no entanto, se a sociedade evoluiu isso se deve aos rebeldes de todos os tempos, pois toda mudança social começa com uma pessoa ou com um pequeno grupo de pessoas. Nosso poder é sempre muito maior do que imaginamos, embora a mudança cobre sempre lágrimas, suor e sangue.

 Refletindo sobre leituras ingênuas. Edna Domenica Merola

A leitura do filme Eu Daniel Blake me fez refletir sobre uma questão (a princípio colocada sobre a recepção estética): uma pessoa idealista (democrata) faz uma leitura ingênua, conservando esperanças de um final feliz? 
Quanto à recepção estética, podemos dizer que sim. E que, no desenlace, a esperança se transforma em tristeza na melhor das hipóteses. Podendo ser intermediada por sentimentos de revolta e/ou culpa. Acrescente-se que a catarse do espectador não sofre nenhum prejuízo social por revelar rebeldia. Acaba funcionando como mecanismo mantenedor do status quo.
Mas, nesse momento social, há leitores de outra inclinação ideológica e que têm exacerbado ideais de exclusão. Esses podem ter torcido para o Daniel Blake se dar mal e ainda ter invocado algum anjo que com sua espada o decepasse (usei um efeito retórico? Perdoem!). Tempos feios! Mas o filme é muito bonito (confiram).


Links para leitura de postagens anteriores de Lendo Cinema

Lendo cinema II

Lendo cinema I

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